As Redes Sociais e o Renascimento das Fraudes Fotográficas Vitorianas: Engano, Tecnologia e a Eterna Sedução do Invisível

No verão de 1861, uma mulher de luto entrou no estúdio de William Mumler, em Boston, buscando um último retrato com seu marido falecido. A imagem resultante mostrava uma silhueta translúcida atrás dela — o “espírito” do amado. Mumler cobrou uma fortuna pelo serviço, mas sua fama desmoronou quando um cliente reconheceu o “fantasma” como um homem ainda vivo. Avancemos para 2023: uma foto de Nikola Tesla “prevendo” o Wi-Fi circulou no Reddit, gerada por IA. Milhares compartilharam, apesar de a citação ser fictícia. Separados por séculos, ambos os casos revelam um jogo perverso entre desejo humano e manipulação tecnológica.

Este não é um artigo sobre fake news. É uma investigação sobre por que, mesmo com séculos de avanço, continuamos a cair nas mesmas armadilhas visuais. E como as redes sociais não são apenas herdeiras, mas curadoras ativas de um legado de ilusão.


1. O Século XIX: Quando a Fotografia Era uma Porta para o Além

A fotografia surgiu como uma tecnologia mística. Seus pioneiros eram vistos como alquimistas, capazes de capturar a alma humana em prata e vidro. Mas essa aura de magia abriu caminho para o primeiro grande surto de fraudes em massa da história.

Os Feiticeiros da Luz: Técnicas que Hipnotizaram uma Era

Fotógrafos como William Mumler e Édouard Buguet não eram amadores — eram showmen. Usavam métodos engenhosos:

  • Dupla exposição: Sobrepor negativos para criar fantasmas, como na foto The Lord Cometh (1869), onde um “anjo” pairava sobre uma criança doente.
  • Pintura em vidro: Buguet posicionava figuras pintadas em placas transparentes entre a lente e o cliente, criando “aparições” personalizadas. Em seu julgamento em Paris (1875), ele revelou que um retrato de “Voltaire espírita” era, na verdade, um ator mascarado.
  • Química criativa: Revelar negativos com vapores de mercúrio para criar névoas fantasmagóricas, como nas fotos de cemitérios “assombrados” vendidas como souvenirs.

O público não apenas acreditava — desejava acreditar. Em 1872, o jornal The Spiritualist publicou cartas de leitores descrevendo “arrepios ao tocar os fantasmas de papel”. A fotografia espírita tornou-se uma indústria, com estúdios em Londres, Nova York e Paris faturando o equivalente a US$ 500 mil mensais (valores ajustados).


2. O Código Genético da Fraude: Por Que o Século XIX Ecoa no TikTok

A fraude visual não evoluiu — apenas mutou. Seus pilares são os mesmos: autoridade falsa, plausibilidade emocional e a exploração do desejo por transcendência.

Casos Gêmeos Através do Tempo

  • Fantasma de Lincoln (1865) vs. Deepfake de Zelensky (2022):
    Após o assassinato de Lincoln, fotos de seu “espírito” no Teatro Ford venderam como pãezinhos. Em 2022, um vídeo falso do presidente ucraniano pedindo rendição viralizou — ambos exploraram o luto coletivo para semear desordem.
  • Fadas de Cottingley (1917) vs. #AngelFilter do TikTok (2023):
    As primas Elsie e Frances usaram recortes de papel para criar fadas “reais”. Em 2023, o filtro #AngelFilter, que adiciona asas digitais a selfies, gerou 2 milhões de posts com a legenda “Prova de que anjos existem”.

Por que funciona?
O neurocientista Marc Dingman explica: “O cérebro humano prioriza padrões reconhecíveis, mesmo que falsos. Ver ‘Lincoln’ em uma mancha fotográfica ou um político em um deepfake ativa os mesmos circuitos de confiança”.


3. O Algoritmo Como Médium Digital: A Nova Sala de Sessões Espíritas

Se os vitorianos iam a salões escuros para ver fantasmas, nós entramos em feeds infinitos. Plataformas como Instagram e TikTok replicam a dinâmica das sessões espíritas:

A Arquitetura do Engano

  1. Efeito Eco: Assim como os médiuns repetiam mensagens genéricas (“Alguém aqui perdeu um João?”), algoritmos reforçam crenças existentes. Um estudo de Stanford (2021) mostrou que usuários que curtem fotos de “OVNIs” recebem 73% mais conteúdo sobre conspirações alienígenas em 48 horas.
  2. Velocidade de Possessão: Em 1890, uma foto espírita levava uma semana para circular em jornais. Em 2023, o deepfake do Papa Francisco de casaco puff chegou a 25 milhões de views em 12 horas.
  3. Anonimato Sagrado: Os fotógrafos-fantasma usavam pseudônimos como Madame Esperanza; hoje, perfis fake como @TruthWarrior2024 postam memes adulterados sem rosto.

O Preço da Cremação Digital
Em 2022, o artista digital Ben Fearnley criou The Digital Medium Project: perfis que geram “fantasmas de IA” baseados em fotos de falecidos. Famílias pagam US$ 200/mês para receber mensagens como “Estou bem, mãe”. A polêmica foi tanta que o Instagram baniu as contas — mas clones surgiram no Telegram em horas.


4. A Psicologia do Engano: Por Que Amamos Ser Enganados

O historiador Simon During argumenta que “a fraude fotográfica é um ritual moderno: uma forma de lidar com o terror do invisível”. Seus motores são:

Três Medos que Alimentam a Máquina de Mentiras

  1. Morte:
    • Século XIX: Fotografias post-mortem de crianças, vestidas e sentadas como se vivas.
    • Século XXI: Contas no TikTok como @AfterlifeMessages, que usam IA para simular voos de falecidos.
  2. Solidão:
    • Então: Espiritismo como rede social vitoriana — sessões eram eventos para solteironas e viúvos.
    • Agora: Fóruns como r/Paranormal no Reddit, com 1,2 milhão de membros compartilhando “evidências” de fantasmas.
  3. Caos:
    • Em 1882, a foto de um “dinossauro no Tamisa” gerou pânico em Londres. Era um lagarto gigante de borracha.
    • Em 2020, o vídeo “5G Causes COVID” incendiou torres de celular na Europa.

A Neuroquímica da Cremação
Um estudo da Universidade de Cambridge (2023) escaneou cérebros de pessoas vendo deepfakes. Ao reconhecer uma fraude, a amígdala (medo) e o núcleo accumbens (recompensa) ativavam-se simultaneamente. “É como comer algo apimentado: dói, mas vicia”, explica a Dra. Elena Ruiz.


5. Manual do Caçador de Fantasmas: Como uma Fraude Vitoriana Nasce em 2024

Vamos dissecar o ciclo de vida de uma fraude moderna, passo a passo:

Passo 1: Escavação do Arquivo Morto

Um artista digital encontra no Flickr Commons uma foto de 1893: operárias têxteis em Nova York. Ignora-se que a imagem foi encenada pelo fotógrafo Jacob Riis para denunciar condições de trabalho.

Passo 2: Reencantamento Tecnológico

  • A foto é colorizada com Palette.fm (IA), ganhando tons sépia modernos.
  • A legenda vira “Garotas protestam por salário igualitário em 1893! #GirlPower”.

Passo 3: Batismo Influencer

Uma microcelebridade feminista (@HerstoryRevived) posta: “Nossas ancestrais eram guerreiras! 🔥”. Hashtags #Resistência e #HistóriaApagada garantem 500k views.

Passo 4: Consagração pelo Algoritmo

O post é impulsionado para fãs de true crime e ativismo. Comentários do tipo “Por que não ensinam isso na escola?” alimentam engajamento.

Passo 5: Morte e Ressurreição

Fact-checkers desmentem: “Foto é encenação, não protesto real”. Mas o post já migrou para o WhatsApp, onde ganha vida própria como “prova” de uma conspiração patriarcal.

O Paradoxo Final:
Em 2024, a própria desconstrução viraliza — um vídeo explicando a fraude alcança 2 milhões de views. O ciclo recomeça.


O Futuro no Espelho Quebrado: Quando a Realidade é um Hashtag

Em 2020, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) exibiu Histórias Feministas, incluindo fotos adulteradas do século XIX. A curadoria era clara: “Toda história é uma ficção consentida”.

Essa é a encruzilhada atual: se os vitorianos usavam fraudes para acreditar no invisível, nós as usamos para sobreviver ao excesso de visibilidade. O artista Jon Rafman sintetiza: “Nas redes, mentimos não para enganar, mas para pertencer”.

Em 1895, o ilusionista Georges Méliès descobriu acidentalmente o stop trick ao filmar um ônibus. Ao manipular a película, criou o primeiro efeito especial: um ônibus que virava um caixão. Méliès entendeu o que as redes sociais esqueceram — a magia só funciona quando sabemos que é mentira.


Biblioteca do Engano: Onde Aprender (e Desaprender)

  • Livros para Desmontar o Passado e o Presente:
    • The Perfect Medium: Photography and the Occult (Clément Chéroux, 2005) — análise de fotos espíritas do século XIX.
    • Homo Deus (Yuval Noah Harari, 2015) — como a busca por imortalidade alimenta mitos digitais.
  • Filmes que Jogam com a Câmera Obscura:
    • Cidade das Sombras (David Fincher, 2024) — thriller sobre deepfakes e identidade.
    • O Gabinete do Dr. Caligari (1920) — obra expressionista que questiona a realidade percebida.
  • Experiências Interativas:
    • This Person Does Not Exist (thispersondoesnotexist.com) — gere rostos falsos com IA.
    • Workshop online Fotografia e Mentira (MOMA) — aprenda técnicas históricas de manipulação.
  • Para os Caçadores de Mitos:
    • Siga @PicPedHistory no Twitter — desafios diários para identificar fotos históricas falsas.
    • Curso Digital Forensics (Coursera) — técnicas para detectar deepfakes.

Antes de Compartilhar, Pergunte:
“Esta imagem me comove porque revela uma verdade… ou porque confirma minhas sombras?” A resposta define se você é um espectador do século XIX ou um humano do século XXI.

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